Rui Barbosa e o ladrão de galinhas
Olá, tudo bem?
Reza a lenda que, certa vez, o meu querido Rui Barbosa teria sido acordado, no meio da noite, por um estranho barulho.
Rui aguçou os ouvidos e percebeu que o som desagradável vinha do quintal de sua bela casa de Botafogo, onde ele residia com a família, fazia um Brasil melhor, cuidava de suas adoradas rosas, e também trabalhava.
A rua São Clemente não tinha o trânsito dos dias atuais. O agito cotidiano era mínimo. Um cavalo aqui, uma Benz ali, crianças correndo durante as manhãs nas calçadas empoeiradas, confidências sussurradas nos bancos do Jardim antes do almoço, saraus encerrando as tardes, raros latidos dos cachorros de estimação cortando as noites.
Mas o barulho que despertou Rui não era comum. Assemelhava-se a um insulto psicológico. Incomodava a sua intimidade.
O barulho era um aviso do Jardim de que algo destoava da paz costumeira. De que algo atrapalhava o descanso das plantas. De que algo invadia o espaço que ele escolheu para ver os filhos crescerem.
Rui não poderia admitir. Seu lar era sagrado. Abençoado. Blindado de todo o Mal, das inutilidades, das pestes, e das pragas. Ao menos naquela época.
Não, o barulho não era saído da boca suja e desonesta dos militantes mal educados, grosseiros e desocupados, que causariam incômodo aos dóceis cachorros que só queriam viver em paz e tinham a simpatia do dono da Casa.
Rui não daria um pingo de atenção aos agitadores picaretas. Para tudo na vida há um limite. No máximo, numa situação que envolvesse qualquer gentalha de baixo nível, Rui chamaria a patrulha da polícia para dispersar a corja, mudaria a tranca da porta para evitar que vagabundos sujassem o seu espaço íntimo e se atrevessem a poluir o ar que a sua família respirava.
O dono de um lar tem a obrigação de filtrar quem pisa o seu chão de trabalho e convívio familiar. Uma Casa de boa família deve ser bem frequentada. Rui não aceitaria qualquer um em seu espaço. Botaria a desgraceira para correr.
Rui descartou a hipótese de voltar a dormir. Inquieto, não conseguiria. Tinha de descobrir o que causava o barulho e ver com os próprios olhos o que o despertou.
A pista era o cacarejo cada vez mais intenso das galinhas. O som vinha do galinheiro. Teria alguma raposa abusada invadido o galinheiro?
Rui vestiu o robe, saiu de seu quarto, fez o sinal da cruz pedindo a proteção de Deus, e desceu as escadas até o Jardim.
A iluminação fraca dificultava a visibilidade. Mas Rui, que enxergava com o coração, órgão da fé e da esperança, que tudo vê melhor e mais longe, e vê até no infinito e no invisível, seguiu em frente. Rui, que julgava com a pureza dos moços, evitou intuir o que o aguardava.
Rui olhou a Águia de ferro que enfeita a frente da Casa. Como era bom tê-la. Como era simples sê-la. A coincidência de haver uma Águia na Casa comprada pelo Águia de Haia. A Águia de ferro esmaga uma serpente. Tão simbólico. Quantas serpentes esmagou. Espiritualmente. Ao longo dos tempos. Sabedoria diante da maldade.
Quando Rui chegou ao galinheiro, viu um vulto. A distração com o perfume das camélias desapareceu. Há tempo para cada coisa e o momento não era para afetos.
-Quem está aí? Saia das sombras da noite, poste-se diante de minha figura, mostre a sua face e identifique-se! Aqui está o dono da Casa.
Eis que surge das sombras um sujeito assustado e agarrado a uma galinha. Rui era um homem miúdo que se agigantava no perigo e nos desafios. Visíveis e invisíveis. O sujeito teve a certeza de qual era a Casa que ousou invadir.
-Seu Rui Barbosa!
-Eu mesmo. E talvez muitos outros Ruis que habitam o meu ser, o Rui que fui e serei. O Rui que existe, o Rui que inventam, o Rui que imaginam, o Rui que mentem, o Rui que nunca quiseram conhecer de fato, o Rui que jamais sentiram, e o Rui que canalhas citam sem autorização e fora de contexto para acusarem inocentes e protegerem crimes de cúmplices que eu acusaria. Sou inclusive o Rui baiano, menino cheio de sonhos, que aprendeu a ler aos cinco anos, e que comia os bolos que a minha mãe vendia.
-Eu só queria pegar uma galinha. Ou um frango.
-Pois então és um meliante!
- Meliante?
- Não o interpelo pelos bicos de bípedes palmípedes, nem pelo valor intrínseco dos retrocitados galináceos, mas por ousares transpor os umbrais de minha residência. Se foi por mera ignorância, perdôo-te, mas se foi para abusar da minha alma prosopopéia, juro pelos tacões metabólicos dos meus calçados que dar-te-ei tamanha bordoada no alto da tua sinagoga que transformarei sua massa encefálica em cinzas cadavéricas.
O ladrão, todo sem graça, trêmulo, sem nada compreender, ainda arriscou perguntar:
-Mas como é, seu Rui, eu posso levar o frango ou não?
Eu adoro essa lenda. Ou história. Ou conto, que cada um que repete acrescenta um ponto, como eu acrescentei diversos parágrafos. E acrescentaria muito mais.
Triste constatar que o Brasil até ingênuo de Rui não existe mais. Nem a sua Casa tem o mesmo guardião tão zeloso e digno. O tempo muda o que conhecemos. E traz o desconhecido que desprezamos. Como a vida é cíclica, o que nos resta é rezar para que o Anjo Rui ilumine e espante a escuridão que invade a História.
Se o ladrão de galinha mereceu do maior jurista brasileiro um passa-fora digno de entrar para a Memória, o que diria Rui aos ladrões de aposentadoria dos nossos velhinhos? Aos imundos que saqueiam novamente os cofres públicos que deveriam abastecer as escolas, os hospitais? Aos que usam o seu nome em vão e o representam sem procuração espiritual? Haja vocabulário elaborado para esculhambar a canalhada corrupta, dizer o que merecem ouvir, sem perder a elegância.
Deus nos proteja. Rui nos inspire.
Um beijo, Leticia.