Por Amor
Olá.
E lá vou eu revirar o baú das memórias.
Sou jornalista e escritora. Minha formação é em comunicação social. O primeiro trabalho foi como repórter do Fantástico. Depois, Globo Esporte e Esporte Total. Na sequência, apresentei um programa de variedades.
A vida é feita de fases. E eu deixo a vida me levar. Planejo o que posso, guardo o que merece, mas estou sempre disposta a descobrir novas estradas.
Um dia, li um anúncio do jornal O Globo sobre a abertura de um concurso para a Oficina de Autor e Roteirista. Nunca tinha feito qualquer curso de roteiros. Escrevi um roteiro intuitivo e enviei. Fui selecionada.
Obviamente, viram que eu não tinha técnica. Meu único contato com roteiro havia sido com um capítulo de novela do Gilberto Braga que consegui para ler. E muitos anos no sofá diante da tela. Que é um “treinamento” de observação muito importante.
O orientador disse que eu tinha talento nato. Que, só de ler algumas linhas e diálogos meus, percebeu que eu teria como ser lapidada. Brinquei com um amigo: “Vou estrear numa novela das 8”.
Naquele concurso, eu cheguei a fazer a segunda prova, mas não fui selecionada. O orientador do projeto me telefonou e disse que, apesar de eu não ter entrado naquele momento, que eu não desistisse. Porque tinha talento. E em breve haveria novo concurso. E assim aconteceu.
Meses depois, nova chamada no jornal. Fiz o roteiro baseado no poema solicitado e enviei. De 600 participantes, apenas trinta pessoas foram selecionadas para a segunda fase. E doze conseguiram se classificar para o curso. Cada semana era eliminatória. Fui a única contratada.
Fiquei meses sem fazer nada e me sentindo esquecida. Não compreendia a mecânica de receber salário sem escrever. Pensava: “Sou novata. Quem vai me convidar?”
O autor Manoel Carlos precisava de um colaborador para a novela “Por Amor”, que estrearia nos próximos meses, no horário nobre. Regina Duarte e Antonio Fagundes como protagonistas. Susana Vieira como vilã. Maneco estava com dificuldade de montar uma equipe. O diretor artístico da emissora enviou para ele o meu texto porque viram no meu estilo um jeito Maneco de ser.
Lembro que era uma segunda-feira e eu assistia à Hebe na tv. O telefone tocou às 22h. Era Manoel Carlos. Achei que era trote. Mas conversamos longamente e percebi que haveria a real chance de trabalharmos juntos. Maneco gostou do meu texto da Oficina. Disse que tínhamos química. E me convidou para escrever “Por Amor” com ele. Assim se deu a minha estreia como novelista. No horário nobre da TV Globo e com um dos melhores autores da TV brasileira. No telefonema inicial, perguntei: “Como devo chamar o senhor? Manoel Carlos, seu Manoel, Maneco?” Ele: “Como você quiser”. Óbvio que quase não dormi de tanta felicidade. Fiquei pensando na minha estreia com o Maneco.
Trabalhamos muito. Em alguns dias, eu pensava que não suportaria o ritmo alucinante. Eram 45 páginas por dia, três vezes por semana. Eu escrevia três capítulos e Maneco os outros três. Dividimos a novela. Maneco escrevia durante o dia. E eu virava a noite escrevendo. Na manhã seguinte, a Globo tinha dois capítulos na produção. Essa foi a segunda vez que fui extremamente feliz na minha vida profissional. Era muito prazeroso escrever um texto e ouvir os comentários no mercado, na praia. Maneco foi uma escola. Uma pós-graduação de vida.
Foi uma experiência emocionante e gratificante. Eu tentava imitar o jeito de Maneco escrever para que os atores não sentissem que era outro roteirista escrevendo. Ganhei dele um livro para entender os “emergentes da Barra”, um grupo de novos ricos que vinha do subúrbio e começava a despontar nas colunas sociais. Eram considerados bregas. Mas só se falava neles. Faziam de tudo para aparecer. Festas megalomaníacas. Compravam até o amor verdadeiro dos colunistas que se derretiam por eles.
Também ganhei livros de poesia escritos por Maneco. Ele adorava Fernando Pessoa. Mergulhei nos versos do poeta por causa dele. Quando acabou “Por Amor”, Maneco me enviou um lindo cartão de Natal com o recado: “Descanse. Nos veremos na próxima”. Trabalhei com outro autor. Em seguida, soube que Maneco tinha me reservado para “Laços de Família”.
Creio que nem tudo na vida é escolha consciente. Por vezes, uma intuição nos leva a outros caminhos. Eu sempre gostei de escrever. Mas a minha entrada na dramaturgia foi muito intuitiva.
Estive com Maneco poucas vezes. Não havia tempo para reuniões. Trocávamos ideias por telefone. Maneco é prático. Detestava ligações. Dizia que tinha secretária eletrônica para não ser obrigado a conversar com ninguém.
Um sábado à tarde, uma filha dele me ligou convidando para ir ao apartamento do autor no Leblon. Maneco tomou o whisky dele e eu fiquei no refrigerante. Havia outro colega na sala. Foi a única vez que conversamos sobre a novela sem ser uma reunião formal. Falamos um pouco sobre a vida.
Maneco tinha dois gatos. E eu tenho medo de gatos. Ele brincou: “Estão presos. Se eu soubesse do seu medo, teria deixado soltos na sala. A melhor maneira de superar o medo é enfrentá-lo”. Na saída, Maneco perguntou se eu estava de carro. Disse que tinha ido de táxi. Ele pediu que meu colega me desse carona. O rapaz torceu a cara. Maneco disse: “Se ele não puder, eu mesmo tiro o carro da garagem e levo”. Imagina eu dar trabalho ao Maneco, tarde da noite. O colega disse: “Eu levo”. Quase me jogou do carro na porta do meu prédio. Mas, ainda assim, a noite foi muito gostosa.
Logo que começamos a trabalhar na trama, a minha avó Luiza faleceu. Maneco me disse: “Você acredita em vida espiritual, na eternidade. Então, não sofra.” Depois eu soube que Maneco tinha perdido dois filhos. Ele nunca comentava sobre o assunto. Era uma espécie de tabu. Há poucos anos, o filho mais novo dele também morreu. Não é uma vida simples a de um homem que perde três filhos.
Maneco é um dos criadores do Fantástico. Um fio que nos liga. E Maneco também criou a Família Trapo, programa de humor com Jô Soares e Ronald Golias, de anos e anos atrás. Na Record, eu escrevi um especial de teleteatro em homenagem à Família Trapo. Outro fio que nos liga. Gravamos "A Nova Família Trapo num teatro, ao vivo e sem cortes. Foi muito prazeroso ver a reação da plateia ao meu texto. No texto para a televisão, ouvimos os comentários nas ruas e nas revistas. Mas não é a mesma coisa de ver a reação imediata que o teatro proporciona. Ninguém finge uma gargalhada ou uma lágrima. Ninguém aplaude calorosamente sem ter gostado do que assistiu.
Houve muita ciumeira por eu estrear em horário nobre e numa novela do Maneco. A TV é uma fábrica de sonhos, mas também de pesadelos. Agradeço cada dia pela experiência que tive. Vieram outras novelas. Com outros autores e também escrevi novelas e especiais sozinha. Mas “Por Amor” estará para sempre no meu coração como um dos momentos mais felizes da minha vida.
Maneco faz 90 anos em 2023. Uma vida de histórias e de personagens inesquecíveis. Para os fãs de teledramaturgia e para quem trabalhou com o autor. Sinto saudade do Maneco. Queria muito encontrá-lo e conversar.
“Longa é a arte, tão breve a vida…” Cantou Tom Jobim e definiu o que penso sobre a nossa profissão. A arte é para sempre.
Um beijo, Letícia.
Normalmente, gosto de comentar, mas essa newsletter é só para a gente ler e reler e reler...
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