George Michael
Olá, tudo bem?
A vida é uma colcha de retalhos das memórias do que sentimos e vivemos. Há livros que nos traduzem, letras de músicas que dizem o que estamos sentindo, lugares que parecem ter sido feitos para nós, pessoas que significam muito.
A minha adolescência foi muito musical. Adorava rádio, programas de clipes, discos de vinil com capas lindas e depois os CDs. A música perdeu com o streaming. Como os livros que precisam ser tocados, sentidos, as músicas precisam de algo concreto. Anos 80 para mim são o auge da beleza e da musicalidade pop.
Eu ouvia as músicas com o encarte, lendo as letras, melhorando a minha pronúncia de inglês, aprendendo palavras e expressões. Vejo mais delicadeza no livro impresso e no CD das capas que simbolizavam a concepção e a mensagem do álbum daquele cantor.
Tenho paixão por músicos britânicos, como Elton John, Paul McCartney, Boy George, Tears for Fears, Duran Duran, Simply Red, Amy Winehouse. São tantos que seria injusto não citar cada um. Talvez por isso, eu sempre tive vontade de conhecer Londres. Não apenas pela Família Real, que acompanho desde que me entendo por gente. Os britânicos têm classe, charme e sonoridade que não consigo ver nos americanos.
Mas há um britânico que eu simplesmente amo. George Michael. É crush eterno. Eu sou contemporânea de George, o que nos aproxima, e me fez crescer com ele. Vendo a sua ascensão e curtindo cada sucesso. Era “um amigo” em outro país.
George é descendente de gregos por parte de pai, terra que amo, e se chamava Georgios Kyriacos Panayiotou. Difícil de pronunciar e de fazer carreira na indústria. O amigo de adolescência, Andrew Ridgeley, com quem criou a dupla Wham!, em 1981, o apelidou de Yog, numa referência a Yogurt grego. Yoghurt, Yogheart. Yog.
Familia muito unida, tranquila. George apegado à mãe e ao pai. Também cuidou das duas irmãs. George conta que sua mãe, super britânica, era discreta e silenciosa. Foi a um show, no primeiro sucesso, quase disfarçada, na plateia comum. Mas ao vê-lo no palco, público delirando, se emocionou tanto, que tentou pular o alambrado para abraçar o filho. Foi contida por seguranças, que não sabiam de quem se tratava. George riu no palco e disse que era a mãe dele. George adorava essa história.
Antes de um show no Estádio de Wembley, já famoso, George foi conhecer o gramado, e beijou o solo. “Eu diria que é um excelente lugar para uma festa”. Na tarde do show, o carro onde estava, de boné e óculos, foi parado por um policial. “Carro não passa, tem show do George Michael”. O motorista desceu, abriu a porta, e mostrou que conduzia o cantor. O policial se afastou, irritado: “Esse não é George Michael. Sou fã e definitivamente não é ele”. George caiu na gargalhada. O motorista foi atrás e o policial precisou ver os documentos para crer que estava diante de George Michael.
Eu os conheci no segundo álbum, que tinha Careless Whisper, Wake Me Up Before You Go Go, e Everything She Wants. Estouraram. A música preferida de George dessa época também é a minha: Everything She Wants.
George tinha metas e era perfeccionista. Criativo, culto, inteligente, com sensibilidade para letras e músicas. Sabia o instrumento certo a ser incluído em tal trecho da música para causar o impacto que ele havia imaginado. Compôs quase todas as músicas que cantou. Não gostava de estar diante das câmeras, mas acreditava que ali algo fluía de seu coração e o libertava.
Há uma história em especial que adoro. George prometeu a si mesmo que seria o maior sucesso britânico com o segundo álbum. Emplacou Careless e Wake Me Up no topo das paradas. Mas conversando com Andrew, disse que desejava algo especial: Uma canção de Natal. Que não fosse uma canção a mais, mas “a canção”, que arrebatasse corações e fosse eternizada.
O amigo Andrew assistia a um jogo de futebol na tv e George foi para o quarto da infância escrever a música. Voltou entusiasmado para a sala e mostrou Last Christmas para o amigo. A música virou um single. E foi super tocada nas rádios britânicas. Não foi a número 1, mas já chamou a atenção. Virou tradição natalina.
Em 2024, Last Christmas comemorou 40 anos de criação. As pessoas que participaram do clipe se reuniram com Andrew para comemorar a data, na estação de neve suíça de Saas-Fee, onde há uma placa “Aqui Wham! gravou Last Christmas”. Fiquei emocionada com os bastidores exibidos por Andrew num documentário e em várias entrevistas para a TV britânica. A gravação parecia uma imensa diversão na neve entre amigos. A alegria do encontro é evidente no clipe. E 40 anos depois, o desejo de George se cumpriu. A música foi a mais executava no Reino Unido em 2024. Para mim, Natal tem de ter Last Christmas.
George realmente amava o Natal. Era o mais festivo, montava Árvore de maneira atrapalhada, servia a mesa, adorava a casa cheia. E, triste coincidência, morreu no Natal de 2016, aos 53 anos. Tão jovem, tão talentoso, tão querido. Lindíssimo.
O então namorado o encontrou morto na manhã do dia 25. Circunstâncias nunca explicadas completamente. Para preservar a imagem de George. Citam coração e rins. George vivia um pouco recluso e não fazia shows desde 2012. Talvez por interferência do namorado. Que se recusou a sair da casa do cantor e criou mil confusões tentando entrar na herança. Fiquei tão chocada que nem sei definir o baque que levei. Um vazio, uma tristeza imensa. Um talento tão jovem, tão cheio de arte para criar e maravilhar os fãs. Meu crush. É injusto gente jovem morrer.
George deixou o Wham! e partiu para a carreira solo em 1986. Não me perdoo por não ter assistido aos seu show no Rio, em 1991. Muita gente, tenho aflição, filas, transporte. Não tinha mordomia e camarote vip. Vi pela televisão. Lembro do palco escuro, as primeiras luzes coloridas, os acordes de um sucesso que sempre abria os shows, o público delirando, coração acelerado. Pedro Bial anuncia: “Vem aí Jorge Miguel”. Como assim, Bial? Mais respeito com George Michael, por favor! “Agora ele soltou a franga”. Fiquei muito zangada com a falsa intimidade e o atrevimento com o meu George Michael.
Eu fiquei hipnotizada com o show. George sexy, charmoso, cantando muito, dançando, e entregando hit após hit. O homem mais lindo e talentoso do planeta estava no Rio. Senti uma conexão com ele. Meu crush tão perto e tão longe. Tenho de rever no Youtube. Revi.
George sempre teve uma imagem de homem sexy. E ficava mais lindo à medida em que perdia o ar de adolescente. No palco, George alucinava o público. Chique, ligado à moda, no palco vestia Claude Montana. Em pelo menos dois clipes convidou top models da época para participarem: “Freedom “ e “Too Funky”.
Conheceu e ficou amigo da princesa Diana. É forte a imagem dele ao lado de Elton John no velório dela, em Londres. No mês anterior, os três estiveram juntos no velório do estilista Gianni Versace, assassinado na porta de casa, em South Miami Beach.
Havia boatos sobre George ser gay, mas ele não assumia. Em 1998, numa das poucas vezes em que se apresentou em solo americano, George foi detido por paquerar um policial à paisana. Convidou-o para uma “visita ao banheiro de um parque”. O policial deu voz de prisão. Houve um escândalo, óbvio, por ser famoso. George contava ingenuamente que “era quase anônimo nos Estados Unidos”, mas deram destaque ao episódio e o massacraram. “Foram seis semanas de exposição, julgamento, baixarias.” Hipocrisia pura. Enfim o tiraram do armário de maneira traumática e George assumiu a homossexualidade.
Quando voltou a se apresentar nos Estados Unidos, anos depois, no Madison Square Garden, em Nova York, relembrou o episódio e agradeceu os apoios recebidos. Virou ativista pelos direitos dos gays, doava para instituições com pessoas em tratamento de hvi, e mantinha muita associações de caridade.
George escreveu o hit “Outside” e fez o clipe vestido de policial. Uma provocação inteligente e que falava sobre as liberdades individuais. “Outside” é uma resposta artística à exposição desnecessária que sofreu.
No refrão, 'Let's go outside in the sunshine... in the moonshine', George convida o ouvinte a se libertar das restrições e desfrutar da vida ao ar livre, seja sob o sol ou a luz do luar. Essa repetição serve como um hino à liberdade e ao prazer sem culpa.
A música também aborda temas de introspecção e autodescoberta, como nas linhas 'And yes I've been bad, Doctor won't you do with me what you can'. George reflete sobre enfrentar e curar as partes de si mesmo que a sociedade pode ver como 'más'. A canção termina com uma celebração da natureza humana e um retorno ao básico, sugerindo que, no fim, somos todos feitos de 'carne e osso' e devemos abraçar nossa essência mais verdadeira.
Em 1985, quando o maestro e produtor Quince Jones reuniu, nos Estados Unidos, os seus maiores astros para fazer o “USA For Africa”, com a canção “We Are The World” aconteceu uma mega produção. Figurinos, estúdios, mil ensaios e preparos. George Michael contava, às gargalhadas, que os britânicos decidiram fazer algo semelhante. Mas aconteceu praticamente no improviso. Bob Geldorf simplesmente ligou para os astros britânicos e os convocou para estarem no estúdio num domingo de manhã. Duran Duran chegou direto da Alemanha. Bono, Elton, todos com cara de sono. George Michael conta que se sentiu como o Pica Pau dos desenhos, com o cabelo "laranja, esculhambado, um fio para cada lado”. Igual Boy George. Mas todos imbuídos do valor daquele momento. Depois houve shows. Mas a gravação do clipe foi improvisada. Ensaiaram no momento de gravar. Compare os figurinos de Michael Jackson cheio de paetês no “We Are The World” e a camiseta de George Michael no “Live Aid”. É um bom parâmetro. E os britânicos chiquérrimos mesmo assim.
George se envolveu com outras polêmicas ao ser pego dirigindo dopado e ser detido. Usava muita maconha por dia e começou a beber exageradamente. Solidão, desencontros amorosos, desilusões. Não é sucesso que preenche o vazio existencial.
Namorou um estilista brasileiro, Anselmo, que conheceu quando veio fazer o Rock in Rio, em 1991. Fez os 2 shows hipnotizantes e foi descansar 2 semanas em Angra. George e Anselmo viveram juntos em Londres durante pouco tempo. Anselmo disse que estava doente, era portador do virus HIV, e morreu pouco depois. George entrou em depressão. Realmente o amava. Mas não se contaminou.
Um fato que George contava é que o cantor Boy George, numa entrevista em que ambos participaram, disse: “George, eu jurava que você era gay, bisbilhotei a sua vida, nunca encontrei um nome, um romance, mas agora você assumiu”. George riu e disse: ”É engraçado porque, aos 20 anos, no Wham!, eu me vestia e dava muito mais pinta do que agora aos 40, mas é desagradável que se importem tanto com o que você faz na intimidade do quarto e com quem você está na cama".
George também contou a Boy George que havia muita cobrança pela masculinidade dele e que teve receio de perder espaço. Que era inseguro e só teve o primeiro relacionamento com um homem aos 27 anos. Tudo a ver com a canção “Outside”. Medo, culpa, julgamento externo. Um homem famoso com medo do mundo.
George demorou a compreender a extensão de sua fama. Tinha o mundo aos seus pés, e milhares de pessoas o amando. Querendo ser o seu amor. Inclusive eu. Crush é crush.
Sinto muita saudade de George. Não era um astro pop distante, arrogante. Era um ser humano maravilhoso, atencioso com os fãs, sorridente, e amoroso com os amigos. Um artista, entregando shows maravilhosos, com simpatia e star quality. Sem os efeitos especiais de hoje, apenas música boa, artista talentoso, e público delirando na pista de dança que ele tornava cada espaço onde se apresentava.
Vivi tanto o Natal de 2024 que o primeiro ítem de decoração que comprei na volta ao Lar foi uma Árvore de Natal. Ouvi muito Last Christmas, e até assisti ao filme de 2019, Last Christmas, delicadeza com Emilia Clarke, escrito por Emma Thompson e seu marido. O filme é pontuado literalmente pela música de George Michael e a trilha é inteira com ele. Na última cena, Andrew Ridgeley faz uma aparição na plateia quando Emilia canta Last Christmas. Saudades do George Michael.
Viver é essa colcha de retalhos. De lembranças, pessoas, músicas, emoções. Vamos criar situações agradáveis e cultivar apenas quem e o que valham a pena serem guardados no nosso coração. Para algum dia no futuro, pensar, voltar no tempo, e sorrir. Porque tudo valeu muito a pena.
Um beijo, Leticia.