Fantástico
Olá, tudo bem?
Meu primeiro emprego como repórter foi no Fantástico. Recém-formada em jornalismo. Uma experiência incrível. Mas era um ambiente muito pesado. Eu era muito menina, 19 anos, sem experiência de vida, com uma ingenuidade incompatível com um espaço tão competitivo, impaciente, massacrante e cruel.
O Fantástico era a cereja do bolo do jornalismo, junto com o Globo Repórter. Só repórter especial tinha vez. E uma menina conseguiu entrar. Liguei até conseguir uma hora com o editor regional da Globo. Simplesmente bati na porta e pedi emprego. Sempre foi assim na minha vida.
O editor regional gostou do meu jeito espontâneo, disse que seria como “oxigênio” para a redação. Que queria renovar os quadros. Que, mesmo entre os mais jovens, “alguns não funcionavam na televisão, tinham cacoete de jornal, postura muito rígida, pareciam estátuas com microfone na mão, e que não eram bacanas de assistir”. Comparou com ator de teatro que vai para a televisão. São linguagens diferentes e nem todo mundo serve para os dois espaços. E afirmou que me daria uma chance. Agarrei com unhas e dentes. Por acaso, tinha uma vaga no Fantástico, o editor regional me indicou e eu iniciei a minha carreira.
Na véspera da minha estreia, nem dormi de tão ansiosa. Meu coração disparava só de me imaginar iniciando a minha vida profissional, trabalhando, na televisão, e logo naquele programa. Ganhando meu primeiro salário oficial. Tirei carteira de trabalho.
Chegava tão cedo na emissora que, diariamente, abria a redação do Fantástico. Queria mostrar serviço e era a última a sair. O chefe de redação falava: “Vai para casa. Acabou por hoje. Não tem nada para gravar.” E eu ficava vendo as edições, atendendo telefone, conversando com os editores, ouvindo as histórias de anos e anos do programa. Voltava para casa à noite. Sempre tranquila e feliz pela chance. Cada dia na redação do Fantástico era uma aula muito mais eficiente do que qualquer faculdade. Eu tinha humildade para aprender. Perguntava tudo o tempo todo.
Os repórteres veteranos não aceitavam muito bem os novatos. As estrelas da emissora mal davam bom dia. Éramos invisíveis. A turma do bastidor era afetuosa. O meu chefe de redação foi um mestre, Marcio Chalita. Trabalhei com ele em outras duas redações. Eu brincava que ele me perseguia e ele brincava que eu é que o perseguia. Marcio era um rabugento muito bem humorado. Falava que era comunista. E eu ria: “Comunista na Globo? Não é contradição?” E ele dizia: “Tenho que suportar. Mas isso aqui é uma idiotice sem tamanho. Uma merda de jornalismo”. Marcio escrevia para o jornal Tribuna da Imprensa. Era lá que se sentia realizado. No Fantástico, parecia um sacrifício, uma burocracia sem criatividade. Marcio praticamente só entregava para os repórteres os resumos das matérias a serem feitas. O diretor José-Itamar de Freitas é quem decidia cada pauta. Havia uma reunião, mas a palavra inicial e final eram do Itamar. Eu e Marcio ficamos amigos de cara. Duas gerações diferentes em harmonia.
O diretor José-Itamar de Freitas era obcecado por reportagens de medicina. Que duravam inacreditáveis vinte, trinta minutos no vídeo. Algo inviável para o jornalismo atual. Raras são as matérias tão longas. Falavam que Itamar era hipocondríaco e que as matérias eram para si mesmo. Conheci mais médicos do que artistas. Mais hospitais do que ruas. Mais remédios novos do que pessoas interessantes. “É um programa para idosos”, dizia o Marcio. Essa parte realmente era um tédio.
Ao mesmo tempo, Itamar tinha uma criatividade e um olhar para o futuro. Não olhava para trás. Queria descobrir novidades, mesmo que fossem doenças novas. Também adorava reportagens sobre ciência e tecnologia.
Vivíamos a era dos clipes musicais. Todo cantor que queria fazer sucesso tinha de lançar o clipe no Fantástico. E a edição final sempre era do Itamar. Certa vez, chegou da gravadora um clipe da Madonna. Era uma diva. Cada lançamento era um show particular que víamos antes do público. Ficamos loucos com a música. Ouvimos umas trezentas vezes na ilha de edição. Uma farra. Itamar pegou a fita e reeditou. Fez uma parada especial de Madonna com os braços para o alto. Congelou a imagem dela numa pose quase que de capa de revista. O que era maravilhoso tinha ficado… Fantástico. Durante a semana, não se falava em outra coisa. Só no clipe da Madonna e na pose final dela. O olhar perfeccionista do Itamar tinha acertado mais uma vez.
Numa tarde, eu o vi conversando com Boni no corredor. Parecia que tinham se cruzado por acaso. Itamar falava que o programa tinha ido muito mal. E Boni: “Um estouro! Foi perfeito!” e Itamar colocando defeitos onde o próprio Boni alegava perfeição. Havia uma história de que o Itamar morria de medo do Boni. Que fugia dele nos corredores e tentava nunca esbarrar com Boni. Imagino o suador de nervoso nessa conversa de surpresa no corredor.
Itamar foi um dos criadores do programa e da linguagem da televisão. Lembro de ter sido convidada uma vez para ir à sala dele. Tinha uma imensa imagem de São Francisco de Assis. Falou para eu tocar na estátua e pedir uma bênção. Distribuía santinhos. Adorava entrevistar padres. Tinha muitas manias. Só saía pela porta que entrava. Se pegasse em algo sujo, tinha de lavar a mão de imediato. Usava álcool para higienizar o ambiente muito antes de a covid surgir. Se ligasse duas vezes e a pessoa não atendesse, “era um sinal para ele não ligar”. Havia também muita lenda sobre ele. A maioria deveria ser bobagem inventada pelos criativos para aumentar a aura de mistério e cheio de manias do Itamar.
Itamar ele era um senhor muito tímido e humilde. Desconfiado. Não dava abertura para ninguém. Não gostava de se expor. Ia pouco à redação durante a semana. As edições iniciavam na quinta e seguiam até a hora de o programa entrar no ar. Os editores viravam as madrugadas nas ilhas de edição e escrevendo a redação final dessas matérias mais trabalhosas. Itamar acompanhava tudo de perto. E, no domingo, Itamar chegava às 7 da manhã na Globo e não saía até o programa terminar. Almoçava sempre um sanduiche de mortadela. Assistia cada matéria antes de ir ao ar e fazia correções onde só ele via defeito. “Essa fala pode cortar um segundo antes”, “aquela imagem está ruim, troca”. Isso faltando cinco minutos para rodar a vinheta de abertura. Cuidava das chamadas do programa. Muitas vezes, as chamadas eram mais atraentes do que as matérias. Itamar levantava a bola. Vendia bem o programa para o público querer assistir. Trabalhar com Itamar era adrenalina pura. Eu pude acompanhar algumas edições com ele. Queria realmente aprender. Tive bons mestres.
Seis meses depois, surgiu uma vaga no Globo Esporte. Eu pedi para ir. E foi a fase mais divertida da minha carreira. Eu adorava o Fantástico e, aos poucos, conquistei a amizade dos colegas. Chorei muito ao sair do programa. Foram à minha casa no meu aniversário. Ganhei um imenso urso de pelúcia. Eu era a mascote deles. A cria da casa.
No Globo Esporte, vivi uma outra experiência: a de ser reconhecida nas ruas. O programa era uma potência. Era diário e lidava com um tema popular. Dava visibilidade que nunca imaginei. Não queria ser famosa. Era tímida. As pessoas falavam comigo na rua e eu meio que “me conhece de onde?!” Custei a me acostumar a ser chamada pelo nome no meio da rua. Tão diferente do Fantástico. Uma vez por semana e por poucos segundos no video. Ninguém decorava o meu rosto. Talvez o nome. Mas, no esporte, você aparece num dia, e, no dia seguinte, o Brasil sabe o seu nome e vira seu amigo íntimo. O repórter é a ligação do clube e do atleta com o povo.
Enfim… Memórias… Na foto em que estou com a equipe quase toda, o Itamar está saindo pela porta. E o Sergio Chapelin à esquerda, com bolsa de couro, estava visitando a redação. Bateu saudade de todos. Que estejam bem. Soube que Itamar faleceu. Ouvi que foi covid. Fiquei muito triste. Sou grata a ele por ter me recebido com tanto respeito no seu amado Fantástico.
Um beijo, Letícia.
Tu és uma enciclopedia da tv, Le. Obrigado por mais essa.