Dix Pour Cent
Olá, tudo bem?
Sim, estou atrasada. E, provavelmente, você conhece. Mas descobri e devorei uma série francesa deliciosa para quem gosta dos bastidores da indústria do audiovisual e das artes dramáticas. Se gosta da França e, em especial de Paris, tem de assistir urgentemente. Se acha os franceses chiques, e quer colocar um pouco de elegância na tela, tem de marcar como prioridade. A cultura e a alma da França estão em “Dix Pour Cent”.
O título original é “Dix Pour Cent”, que significa “dez por cento”, como uma porcentagem que o empresário cobra do artista, mas também é exibido no streaming como “Call My Agent”, algo como “chame o meu empresário”. Os agentes, além de lidarem com as carreiras dos artistas, são como babás, terapeutas, conselheiros, “descomplicadores” de toda situação que surge.
A série estreou em 2015 e teve a quarta temporada exibida em 2021, mas só há pouco tempo li a indicação no jornal “The New York Times”. Sempre gosto das indicações que fazem. E, para elogiarem algo francês, é porque não há como negar a qualidade. Mesmo que atrasado. No segundo episódio, já me senti íntima dos personagens. Torço para que decidam gravar a quinta temporada.
O elenco fixo e os convidados são uma mostra do que a França tem de melhor. Algumas estrelas participam como elas mesmas em situações divertidas. Riem de si mesmos. Isabelle Adjani, Juliette Binoche, Isabelle Hupert, Sigourney Weaver, Monica Bellucci, Jean Reno, Christopher Lambert. É uma festa para os olhos de quem reverencia o talento.
A história cobre a rotina e os negócios da agência ASK (ascá). Os protagonistas Camille Cottin, Thibault de Montalembert e Assaâd Bouab têm uma química muito intensa. Os assistentes são divertidos e compõem a história com cenas próprias. Não atuam como meras escadas ou orelhas dos protagonistas.
É definida como uma comédia dramática. Mas eu a considero uma tranquila e agradável visita ao cotidiano dos personagens. Não piadas toscas. Há situações divertidas. Não há o riso destrambelhado do humor americano, nem a chanchada brasileira, e tampouco o riso tímido dos ingleses. É o sorriso dos franceses, que inicia no olhar cínico. Não há overacting. Os atores atuam com naturalidade. Desfilam por entre frases perfeitas.
Não há grandes dramas, mas situações comuns à vida de todos nós. E, mais especificamente, dos artistas. Como o caso da atriz que é indicada pelo agente para um papel num filme americano, mas é considerada “velha” pelos produtores. Sugerem que aplique botox, faça pequenas correções no rosto, mexa na bochecha. Para ela, que tem pouco mais de quarenta anos, e é uma atriz de qualidade, soa quase como agressão e como ofensa a aparência do rosto ser mais importante do que a atuação. Você olha e vê uma mulher jovem. Ela se olha no espelho e se vê jovem. Mas, para a cruel indústria do cinema, está “velha’.
Há os conflitos amorosos, a solidão, a dedicação ao trabalho que substitui a vida pessoal, as famílias, os colegas que se transformam em parentes, as muitas brigas entre eles que são resolvidas ou digeridas com champanhe. A rotina da agência e das pessoas por si só já é uma história. Ninguém quer salvar o mundo de uma invasão alienígena. Só quer fazer arte. E sobreviver dela. A cada episódio, alguma participação especial traz mais um charme à ASK.
Há os atores que exigem isso e aquilo. Há os que imploram por uma chance. Há os atores que comportam-se como crianças mimadas, chatas, e a equipe tem de se controlar para não explodir. Há os atores que alteram o texto, querem dirigir as cenas, implicam com a atuação alheia, querem escolher os outros atores. Como em qualquer set de gravação. A fachada é de extremo profissionalismo, mas o bastidor é o festival de egos de sempre. A feira das vaidades.
Num episódio da primeira temporada, uma atriz acaba de ter o seu segundo filho. Vive sozinha com as crianças e está em dificuldades financeiras. Um bilionário russo, que costuma passar o aniversário em Paris, sempre liga para a agência e solicita uma atriz para acompanhá-lo em sua estadia. Os agentes mais jovens reclamam: “Não trabalhamos com scort girls, acompanhantes”. Mas se olham e concluem: “Tem quem aceite”. No dia seguinte, eles se surpreendem ao ver na capa de um jornal a tal atriz pega em flagrante com o russo. “Foi para pagar as dívidas e pelas crianças. Eu assinei uma cláusula de sigilo!”, alega. O agente replica: “Imagina se ele vai sair com você e não vai vazar para a imprensa. O sigilo só vale para você. Ele pode contar o que quiser”. Para abafar o escândalo, o agente decide que ela doará os vinte mil euros do “cachê” para a Unicef, numa cerimônia com a presença da imprensa: “Sempre inventam calúnias! Meu objetivo sempre foi ajudar as crianças carentes!”, reclama, diante dos repórteres. A prostituição foi transformada em ato de caridade à força. Ela doa praticamente obrigada.
Num episódio, a assistente novata manda entregar um presente à uma estrela: uma écharpe caríssima. E jura que está agradando. A chefe, chocada, horrorizada, reclama: “Verde?! Dá má sorte! Ator algum usa verde!” A assistente corre, desesperada, para impedir que o presente chegue à estrela. E a vê, discretamente, jogando a écharpe no lixo. Com pena, porque é bonita. Mas verde.
A série mostra o leve esnobismo dos atores franceses. A comparação com os americanos é inevitável. Enquanto os franceses buscam personagens profundos, sofisticados, e roteiros de qualidade, sugerem que os atores americanos querem o dinheiro fácil dos blockbusters. Mesmo que os personagens sejam ridículos ou vulgares. É mais ou menos como a rivalidade entre atores de teatro que se acham muito superiores aos de cinema. Como se a arte pertencesse apenas aos que fazem teatro. “Os americanos nos acham doidos subdesenvolvidos”, diz uma personagem ao final da terceira temporada. O Velho Mundo de Paris não quer ser moderno e virar uma Las Vegas qualquer. Na quarta temporada, os assistentes da agência ficam chocados com a hipótese de terem de aderir ao streaming. Só amam e respeitam o cinéma.
Não vemos figurinos glamourosos. Ninguém veste grife no cotidiano. Soa até cafona para eles. E a maior parte dos agenciados é de artista sem tanto dinheiro. Mesmo os agentes comentam sobre os perrengues financeiros. Mas passam a elegância de quem não precisa ostentar. Como quem diz: “Não sou celebridade fútil, sou artista”. São chiques sem forçar. A elegância deles está na simplicidade com que se mostram. “Não sou uma personagem, sou uma pessoa real”. De nariz empinado, claro. Senão, não seriam franceses.
No início da segunda temporada, há uma cena hilária que mostra o quanto a imprensa de celebridades é superficial. Uma atriz trai o ator que é seu par na vida real. É a primeira vez que atuam juntos. A traição acontece justo quando iniciam a divulgação do filme. Tentam abafar o escândalo. Um jornalista liga e a assistente diz: “O ator não pode falar. Por que não entrevista os roteiristas? Eles têm coisas muito interessantes para dizer”. E o jornalista pergunta “o que é um roteirista”. E a assistente, abismada, responde: “É quem escreve os textos”. É uma crítica maravilhosa. Só a fofoca interessa. As notícias reais são descartadas.
Na sequência, uma jornalista entrevista a atriz do escândalo. O agente filtra o que ela diz, porque está falando a verdade, o dano será imenso para o filme a ser lançado, todos vão perder, e tenta “adaptar” o texto. A jornalista fica entre o “escrevo” e o “não escrevo”. O agente percebe e se aproveita: “Essa palavra não. Troca por aquela outra.” A atriz insiste: “Não há solução, vou recuar”. O agente adapta: “Vai recuar para a frente, para seguir em frente mesmo que pareça que recuou para trás”. A jornalista não entende patavinas. E a gente ri da cena absurda e tão verdadeira. Não contente, o agente, já agoniado e desesperado pelo estrago, passa a ditar o que a jornalista deve escrever. Ao fim, não se aguenta, pega a caneta e redige o texto.
Os relacionamentos estão sempre presentes nas conversas informais, nos roteiros e nos bastidores. “Um casal só é casal após três anos.”, diz o diretor da agência. “Antes disso, é o quê?”, pergunta o agente de artistas. “Uma comédia romântica”.
A entrada de um sócio bilionário, autoritário, e que não compreende nada de arte, altera as relações, mexe no tabuleiro já estabelecido, e cria situações que oxigenam a série. A cada episódio, “Dix Pour Cent” fica melhor.
O encerramento da segunda temporada é um dos melhores episódios: o festival de Cannes e a participação maravilhosa de Juliette Binoche. Impossível não rir e não querer fazer parte daquela equipe. Outra participação excelente é a de Monica Bellucci tentando encontrar um “namorado comum”.
Ao final da última cena, do último episódio, fica a pergunta: por que não vemos mais séries e filmes franceses? São deliciosos. E sempre haverá Paris.
Um beijo, Letícia.