Cassiano Gabus Mendes: artesão das palavras.
Olá, tudo bem?
Imagine um Brasil onde as noites eram um ritual mágico: famílias se amontoavam em salas iluminadas pela luz trêmula da televisão, rindo até as lágrimas, suspirando com amores impossíveis e se reconhecendo nos espelhos tortuosos que refletiam suas próprias vaidades e sonhos.
Esse era o mundo tecido por Cassiano Gabus Mendes, um artesão das palavras, um alquimista da telinha que transformava o trivial em poesia e a mesquinharia humana em comédia irresistível.
Suas novelas eram exibidas no difícil horário das 7 da noite, da Rede Globo,. Mais do que entretenimento, as tramas eram crônicas vivas de uma nação que aprendia a rir de si mesma. Sem ser humilhada. Era um riso entre “gente da família”. Com intimidade entre autor e público _ laço de afeto criado com confiança.
Cassiano nasceu em São Paulo, em 29 de julho de 1927, com o rádio no sangue. Filho do radialista Otávio Gabus Mendes, o autor cresceu entre microfones, roteiros e bastidores. O menino brincava com histórias como quem monta um quebra-cabeças.
Antes de se tornar o mestre das novelas, Cassiano fez de tudo na televisão: atuou como ator, sonoplasta, contrarregra, roteirista, diretor. Aos 23 anos, Cassiano foi o primeiro diretor artístico da TV Tupi, em 1950, ajudando a dar vida à recém-nascida televisão brasileira.
Com TV de Vanguarda e Alô, Doçura!, inspirada na comédia americana I Love Lucy, o autor plantou as sementes do que seria a sua revolução.
Na Globo, a partir de 1976, com Anjo Mau, Cassiano encontrou seu palco definitivo, escrevendo até 1993, quando um infarto o levou para o infinito das estrelas, semanas antes do desfecho de O Mapa da Mina, deixando um vazio nas telas que ainda ressoa.
Seu estilo? Um bordado delicado de humor, ironia e crítica social.
Cassiano não escrevia “apenas” para entreter. O autor segurava um espelho diante da sociedade brasileira, expondo suas futilidades, ambições e pequenas hipocrisias com uma pena afiada, mas nunca cruel.
Suas novelas – Locomotivas (1977), Elas por Elas (1982), Ti Ti Ti (1985), Brega & Chique (1987), Que Rei Sou Eu? (1989) – eram como quadros vibrantes, cheios de cores e contrastes.
Cassiano misturava comédia romântica com sátira sofisticada, criando tramas que faziam o público gargalhar e, quase sem perceber, refletir.
Seus diálogos eram como duelos de esgrima: rápidos, precisos, cortantes. E seus personagens? Ah, esses eram o coração pulsante de suas histórias.
Adoro Mário Fofoca, o detetive atrapalhado de Elas por Elas, vivido por Luis Gustavo, que transformava cada investigação num festival de confusões cômicas. Era uma delícia quando Mario Fofoca entrava em cena.
Havia a rivalidade épica entre Jacques Léclair e Victor Valentim, em Ti Ti Ti. Dois estilistas, estilo divas de Ópera, que transformavam a moda em uma guerra de egos, como na maioria das vezes realmente é.
Reginaldo Faria e Luis Gustavo brilhando na tela. Ousadia escrever sobre moda e colocar dois atores em vez do clichê “moda é coisa de mulher“. Christian Dior pode. No Brasil, Jacques e Victor foram um ato de coragem de gênio.
O Brasil se deliciou com a criativa Que Rei Sou Eu?, uma fábula medieval que, sob o véu de um reino fictício chamado Avilan, escancarava as mazelas políticas do país, com uma ironia tão afiada que parecia escrita para os dias de hoje.
Seus personagens eram espelhos tortuosos: vaidosos, ambiciosos, humanos, falíveis. Cassiano não os julgava. Ele os criava livres, indomáveis, e os entendia. Talvez por isso o público os amasse tanto. Havia cumplicidade entre texto e tela. Autor e público.
A inspiração de Cassiano vinha do cotidiano, daquele Brasil barulhento e contraditório que ele observava com olhos de antropólogo e coração de poeta.
Ele via a comédia nas pequenas coisas: nas fofocas de bairro, nas rivalidades de classe, nos sonhos exagerados de quem queria ser mais do que era.
Beto Rockfeller (1968), na TV Tupi, foi sua primeira obra-prima, uma novela que quebrou as barreiras da teledramaturgia ao trazer um anti-herói carismático, um malandro que se passava por rico – um espelho do Brasil que queria ascender a qualquer custo.
Na Globo, ele refinou esse olhar, criando histórias com no máximo 30 personagens, todos essenciais, todos brilhantes, como peças de um tabuleiro onde cada movimento era calculado.
Cassiano era um enigma. Reservado, avesso aos holofotes, preferia a solidão de sua máquina de escrever à agitação dos estúdios. Não era um deslumbrado com o ofício. Era um criador discreto e de alma gentil. Seu texto era como o espelho de sua alma carismática e livre.
Casado com Elenita Sánchez, irmã do ator Luis Gustavo, o autor era pai de Cássio e Tato Gabus Mendes, atores que herdaram seu talento e sua paixão. Dizia, com um sorriso irônico, que ser autor era bom porque não precisava ir à emissora todos os dias – um toque de humor que revelava seu desejo de liberdade e até impaciência com o mundo de aparências da televisão.
Sua única aparição na tela, como o excêntrico D. Franco Torremolinos, em Perigosas Peruas (1992), foi um carinho relutante a Carlos Lombardi. Dizem que Cassiano detestou a experiência.
Ouvi que Cassiano reescrevia suas novelas com uma dedicação obsessiva, ajustando diálogos até o último minuto. Quem nunca? Vontade de segurar o texto até o personagem ditar seu próprio pensamento. Cassiano deveria sofrer com os prazos da televisão.
A lição de Cassiano como criador é um convite à coragem: ele nos ensinou que o humor pode ser uma arma poderosa, capaz de desmascarar verdades sem perder a leveza. Sem humilhar quem o assiste e o aplaude. Ele mostrou que uma boa história não precisa de excessos – apenas de personagens humanos, tramas bem amarradas e um olhar que enxerga além da superfície.
Cassiano Gabus Mendes não escreveu novelas. Exibiu a alma de um Brasil que ria de suas próprias falhas, que sonhava alto mesmo tropeçando, que buscava amor em meio ao caos. E, ao fazer isso, deixou um legado que pulsa como um coração inquieto, lembrando-nos que, entre uma risada e outra, há sempre espaço para nos tornarmos melhores.
Saudades de novelas das 7 do Cassiano.
Um beijo, Leticia.